quinta-feira, 25 de março de 2010

Regresso


Depois de tantas palavras dificieis de dizer, passaram quase 3 semanas para que conseguisse dizer regresso. A mais dificil de dizer em toda esta experiência. O último dia no Haiti foi pesado... muito pesado. Queria desaparecer sem me despedir, sem ver os olhos tristes das pessoas que nos viam partir. Não ter que responder a: "Como vai ser agora?". Não ter a sensação nauseante de estar a abandonar aquelas pessoas, aqueles amigos. Dei o meu relógio digital ao Hervé. O homem de 36 anos e 95 kilos de músculos, armado, antigo deputado que nos conduzia pela cidade no jipe que servia agora de sua casa começou compulsivamente a chorar. Dei-lhe dos abraços mais sentidos de toda a minha vida enquanto segurava os meus músculos faciais. Não há um segundo que não pense no Haiti... um segundo em que me sinta estranho cá. Já não sou o mesmo... Durante a viagem para cá irritaram-me as conversas banais, a rudeza do mundo "desenvolvido", as caras mal-dispostas das pessoas porque terem de estar muito tempo à espera na fila do pão ou de uma consulta no centro de saúde. Confesso. Irritaram-me os doentes que entopem os centros de saúde com vontade de fazer TAC porque lhes doi o cotovelo, que exigem tudo e que se vitimizam... Confesso... Mea culpa.
Terminou um capítulo. Escrevemos agora a introdução dos próximos.Uma equipa de um médico, um enfermeiro e um logistico ficaram no Haiti e voltarão em breve. Acabou-se o nosso dinheiro. Mas porque o mundo é feito de pequenas vontades que se transformam em grandes feitos pedia a cada um de vós que desse a conhecer, ao máximo número de pessoas, o nosso trabalho, o nosso espírito. Pensamos em novas formas de lutar e, no final, voltar. Voltar onde nunca, nos nossos corações, deixaremos de estar.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Lambi


Olhem bem para isto... No meio de tanta história triste no domingo tiramos umas "férias" de um par de horas e fomos à praia! Nessa "praia" (mais uma casa com acesso ao mar) estava um senhor que vendia caracóis do mar (ou búzios) grelhados com molho picante e lima chamados, no Haiti, de Lambi. Eram deliciosos!! nem imaginam. Também a fruta  é deliciosa. Existe mini-manga, manguinha, manga, mangona!
Os mergulhos no mar souberam a jacuzzi....

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Afinal a terra treme mesmo

Hospital de laRouge

Os dias tem sido ocupados... como se tivessem já havido calmos. Gostaria de agradecer todas as mensagens que temos recebido, a força que se sente que vem dos nossos. É importante. Acreditem.
Apesar de ver os resultados indirectos da destruição que a terra provocou quando dançou e que continuo sem perceber como tal acontece, pude, há duas noites atrás, sentir a força do músculo do nosso planeta. Por volta da 1h30 da manhã, um sismo de 4.7 de magnitude fez tremer a nossa tenda. Acordei obviamente sobressaltado. A sensação é absolutamente diferente do que alguma vez poderia imaginar (e muitas vezes imaginei). Sente-se um desamparo, um disparo de adrenalina uma vontade de nos segurarmos a algo que não abana. A terra lança um ar pesado e um som sonante assustador. Os cães ladram descontroladamente num aviso tardiamente entendido por nós como o prenúncio do gemer da terra. Aqueles segundos são longos. O que será que vai acontecer? as pessoas gritam, falam alto transformando o silêncio do inicio da noite num terror já demasiado pesado para os Haitianos. A terra descansa. O tremor é susbstituído pelo bater do coração de todos nós. Pergunto-me como irão alguma vez os haitianos ser capazes de viver dentro de uma casa de tijolo sem sentir medo. Talvez nunca.
A sensação é como se estivessem dois deuses a baloiçar o chão que pisamos, ou onde dormimos. Numa brincadeira de mau gosto.
Numa reunião há cerca de dois dias, nas tendas de campanha da ONU, o grupo de trabalho de saúde mental dizia que cerca de 95% da população sofre de sequelas psicológicas do sismo. 95%?
Neste momento nada é suficiente. Mas não deixa de ser surreal ver jipes a encher as estradas, pessoas em fila para comprar telemóveis, fruta na rua, água em venda, um mercado de uma vida normal desestabilizada por um cataclismo bíblico.
O governo continua o seu processo de introdução no mecanismo funcionante do país. Está agora em todas as reuniões da ONU e já se começa a ver os efeitos do que tentam fazer. Esta semana fizemos cerca de 6 horas de viagens para conseguir um papel e após 5 ou seis visitas ao mesmo escritório não conseguimos uma declaração que somos agora obrigados a ter em como estamos autorizados a ajudar o país... Dei graças a deus por ser português porque se não estivesse habituado a burocracia estaria muito mas mesmo muito irritado.
Continuo a ser o médico seleccionado para ver crianças pequenas o que me deixa especialmente feliz pela minha predilecção pelas mesmas. Muitas mães não sabem preparar o leite, não têm leite, nada... Amanhã vou tentar levar duas caixas de leite em pó para uma criança de 1 mês e meio que tem bebido leite de vaca, quando há...
Não há uma única máquina de TAC no país...

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O trabalho

O trabalho tem sido árduo, pesado nas horas, intelectualmente... Há tanta coisa a pensar no mesmo doente. Não tenho visto situações muito complicadas e nada do frenesim de feridas e amputações e afins dos primeiros dias pós terramoto. Muitos olhares tristes, perdidos, muitas dores de estômago por falta de comida, muita sede e desespero. Mas também sorrisos... Os pequenos são sempre engraçados. Nunca na vida vi, e nunca mais vou ver, tanta sarna. O márcio é um trabalhador incansável. Acorda quase todos os dias por volta das seis horas da manhã para preparar 17 litros de leite de fórmula para as crianças que vivem no acampamento ao lado do nosso. Já por duas vezes tentei acordar para o ajudar mas confesso que não tenho conseguido. O trabalho dele proporciona fotos lindas como aquelas que podemos ver aqui.





Começou agora a chover como se não houvesse amanhã... a chuva vai tão rápido como vem mas deixa as suas pegadas (e as nossas) bem visíveis. Soube hoje que também aconteceu uma desgraça na Madeira. Também já sei que os familiares da A. estão bem. Espero que se resolva rapidamente e que não se perca mais ninguém.
Hoje fomos trabalhar em formato de clínica móvel (leia-se às costas) e fomos para uma favela no sopé das montanhas que rodeiam PAP. Estive cerca de 8 horas a trabalhar de pé sem parar um segundo.



 Fiz 70 consultas. O márcio media as Tensões arteriais, a temperatura e o pulso e fazia um primeiro apanhado dos sintomas (obrigado Márcio). Depois passavam para mim que as auscultava e fazia a avaliação final. Distribuimos preservativos masculinos e femininos. No final já mal me aguentava de pé...

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Matthew 25

Mesa principal da Matthew 25 à hora do jantar

Ora aí está... Finalmente posso ter um bocadinho para vos tentar explicar onde estou. E já há algum tempo que o pretendia fazer. Estamos a dormir em tendas no quintal de uma casa com o nome de Matthew 25. Esta casa era antigamente um Hostel para backpackers em Port-au-Prince. Há cerca de 2 anos foi "alugada" por uma coligação de ONG's internacionais que davam apoio ao haiti ainda antes do sismo de 12 de Janeiro. Após o sismo a casa manteu-se de pé e ficou de alguma forma aberta a alguns voluntários que com sorte acabaram por "cair" aqui. A casa é gerida por três pessoas: Uma freira "sister mary" com 76 anos que não cai completamente no esterótipo de freira, e um casal de americanos que de Cape Cod, Massachusetts que andam na caso dos 60 anos. Nesta casa temos jantar e algum conforto. Sempre estiveram, desde o inicio, cerca de 20-25 pessoas a utilizar a casa incluindo o pessoal haitiano que ajuda nas lides. A sensação que se vive cá dentro é tão comfortável... Um grupo de desconhecidos com o mesmo objectivo. Que colaboram na tentativa de todos juntos ajudarem o povo haitiano. Bebe-se coca-cola à noite, à volta de uma ou duas mesas quando o jantar é servido por volta das 18.30-19h. Ouvem-se as histórias de como foram feitas amputações naquela mesma mesa, lêem-se artigos acerca do petroleo descoberto no Haiti e nos intenções encobertas dos estados unidos. Ouvem-se histórias do que se passa no interior do Haiti, dos projectos de desenvolvimento da agricultura e da capacitação dos haitianos, histórias de lugares longínquos e desconhecidos. Conheci pessoas de São Francisco, Nova Iorque, Wiscounsin, Califórnia, Républica Dominicana, haiti e outros que sinceramente já nem me lembro. Poucos europeus e neste momento nenhum de que me lembre.
De amanhã temos direito a pequeno almoço. As duas refeições são servidas em formato de buffet à volta da mesa principal e tenho a dizer-vos que a comida é deliciosa! Quase sempre vegetariana mas deliciosa!! o Pão tem o formato de um papo seco mas é achatado e consistente, também delicioso. E vocês que imaginavam que eu só comia enlatados. Nesta casa já passaram duas equipas de documentários, a últimas das quais da National geographic, geralmente para acompanhar um grupo de profissionais de saúde americanos. O último dos grupos chegou quase de surpresa e eram 25!!! Durante 3 dias a casa "alojou" 45 pessoas. Podem imaginar a logística disto! Como hoje de manhã tinha 4 pessoas à minha frente, optei por não usar o nosso Cat Bath (ver mais à frente) e tomei banho num género de uma fonte onde algum do pessoal das ONG´s toma banho. Foi uma experiência interessante uma vez que me meti debaixo de uma bananeira no meio de muitas e, peladinho como vim ao mundo, um pouco envergonhado pela possibilidade de poderem aparecer pessoas a qualquer momento, lá tomei o meu banho com o meu baldinho. :) A água era deliciosamente macia e soube-me a jacuzzi de duas horas... Inicialmente tomava-mos banho numa casa de banho normal mas a certa altura os donos da casa chegaram à conclusão que as águas do banho iam desembocar a um local onde os haitianos iam buscar água para uso próprio pelo que foi montado, junto às tendas, um Cat bath que não é mais do que um oleado com uma mangueira. É divertido mas não muito confortavel porque a terra deste país parece cimento e quando se agarra aos chinelos quase precisa de um martelo para a tirar.


Ainda não percebi a ligação das fundações da casa com a igreja ou religião mas acabaram de me dizer que Matthew 25 será ligado ao livro de Mateus 25. No primeiro dia demos as mãos à volta da mesa e demos graças. Foi estranho. No entanto, no dia a dia, não se sente essa mesma carga religiosa.
Hoje a casa está mais calma... Voltou à sua normal ocupação... Conversa-se languidamente para versar sobre quem somos e que olhares lançamos ao mundo... Uma aragem vagueia pelas janelas eternamente abertas da casa, empurradas pela ventoinha da sala. Eu, no meu computador, sinto-me quase em casa, cozy (mana afinal até gosto :)). Faltam os meus que sei que me esperam enquanto estou neste momento, neste pedaço de história.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Olhares sós...

As notícias são pouco frequentes, eu sei... Não há tempo... Prepara-se simplesmente um novo sistema de saúde e eu estou bem no meio da acção. A internet tem sido muito intermitente o que também não me permite disponibilizar o pouco tempo livre para poder descrever o que vou fazendo e sentido. Ontem as Nações Unidas lançaram o último relatório da catástrofe... 212.000 mortos, 1.200.000 pessoas a viver em abrigos e imaginem só... Cerca de 300.000 desalojados. Isto significa que há este número de pessoas que dormem na rua, que não têm qualquer sítio onde ficar. Hoje, às 5 pessoas a quem perguntem onde estavam, todas responderam na rua... Usando o pleonasmo do sentimento já descrito... quem é este povo que pede perdão, que se sente culpado dos pecados vividos que origiraram esta ira de Deus? São pessoas com vocês, como eu, como todos nós. Pessoas que gostam de um sorriso, de um carinho, de alguém que os ouça. Curiosamente a minha actividade clínica manifesta-se também no Haiti como prestador de cuidados primários. Hoje vi uma senhora de 76 anos que queria apenas medir a Tensão Arterial. E lembro-me constantemente de que é isto que adoro fazer. Contacto, o olhar do meu doente, a reação a uma afirmação ou acto médico. Já curei ansiedades apenas com as mãos, com a tranquilização com bruxaria e sensibilidade.

É um povo devastado... A menina que veêm na foto veio a correr para mim sem razão e abraçou-me e depois... adoptou-me... levou-me à sua mãe e tentou que eu desse a minha mão à mão da sua mãe... Adptou-me como o seu pai provavelmente morto sem explicação... Como consegui virar costas? Com dor, com um aperto de peso indescritivel... Tem perto de 3 anos... e este é olhar dela...
Continuamos a lutar pelos medicamentos, pelos bens médicos, pelos doentes e pela melhoria do seu futuro.

Penso que vamos conseguir deixar a nossa marca. Nem que seja nos pequenos sorrisos. No leite que lhes damos, nas camas que lhes proporcionamos, nos medicamentos que apenas só aliviam uma dor diferente daquela de que todos sofrem e que é intratável.
Os dias são cansativos e nem os chuviscos esporádicos refescam o ar quente e húmido das caraíbas.
Amanhã voltarei para os meus doentes... Para os doentes e pessoas de ninguém...

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Faz hoje um mês...

Antiga Escola de enfermagem no Hospital Principal de PAP

Faz hoje um mês que o mundo recomeçou a contagem dos anos no Haiti... Se a biblia esteve certa certamente o apocalipse terá começado aqui.... Só hoje consegui, por falta de tempo, descrever os primeiros dias na "clínica". As primeiras viagens para o centro da cidade...
Se pudesse ligar as minhas emoções à porta USB do computador faze-las transformar em palavras, certamente poderia revelar-vos mais do que aqui se passou... Retiro as minhas palavras... Toda a cidade está de restos. Em todas as ruas existem edificios caidos, completamente transformados em pó... Em todo o lado... Ainda nem sequer consigo entender na minha cabeça o que se passou aqui... Não consigo entender o que teram vivido as pessoas naqueles 28 segundos e nos dias que se passarão... Digo isto sem ser de forma alegórica mas quem quer que tenha vivido aqueles momentos CERTAMENTE pensou que o mundo estava a acabar. Imaginem tudo o que está à vossa volta a cair, o vosso mundo a ser absolutamente sacudido. As descrições são absolutamente incriveis... Um estudante de Medicina que nos ajuda descreveu que estava num carro... de repente o carro começou a banar quase até virar. No mesmo momento em que sairam do carro e começaram a correr uma bomba de gasolina explodiu. Muitas pessoas foram expelidas, queimadas, portas voavam... Não sei... O mundo caiu aos pés deste povo já de si massacrado. E vive neles a culpa e a responsabilidade de ter provocado esta catátrofe... Hoje por pouco, e pela primeira vez, quase chorei... Vi dos momentos mais incriveis e significativos da minha vida... Fomos chamados ao centro do campo perto da clínica pois haveria jovens a sentirem-se mal. Na "cerimónia" de memória do primeiro mês decorria uma celebração religiosa no centro. Acabamos por nos vermos no meio de milhares de pessoas, com os braços no ar... Gritavam, todos, a alta voz, para que Deus os ouvisse, "Perdoa, Perdoa o Haiti".

 A vozes elevavam-se o máximo que podiam e o acumular das milhares de bocas tentavam de facto chegar a Deus... Nunca tanto eu desejei que Ele de facto exista e que possa de facto ouvir esta cidade. Queria eu próprio fazer o milagre impossivel de acontecer...

Por outro lado a actividade médica é também desesperante mas estamos a conseguir fazer muito trabalho com muito pouco. Temos poucos medicamentos, muita gente para ver. As crianças são fabulosas mas estão doentes e não temos medicamentos para lhes dar... Corro a todo o momento para ver o que posso fazer, o que lhes posso dar... Que sorte nós temos no nosso País... E como nos queixamos do tempo para ter uma consulta, do tempo para espera num centro de saúde... que os medicamentos são caros... Que sorte nós temos.
Resta-me fechar os olhos e ir buscar ao meu coração o meu mais profundo sentido de esperança... Nos próximos 100 anos esta cidade necessitar de muita muita esperança.
Obrigado por todas as mensagens, obrigado por ouvirem, obrigado por terem esperança também...
Ricardo